segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Sobre democracia, liberdade e tolerância

Disponível em: http://www.unesp.br/portal#!/noticia/16439/sobre-democracia-liberdade-e-tolerancia-/

Ainda não assentou a poeira dos eventos que sacudiram Paris na semana passada. Novos atos de intolerância e violência têm eclodido e preocupado a opinião pública mundial, notadamente aqueles relacionados com o aumento da islamofobia e a reação de grupos políticos mais radicalizados, que enxergam na ação direta uma resposta aos seus ressentimentos.

Do que podemos assistir até agora, a maior consequência do assassinato de jornalistas e cartunistas do jornal Charlie Hebdo foi a vitória da intolerância. Intolerância, de um lado, daqueles que tentam dessacralizar a fé e a cultura alheias como se isso se justificasse pelo simples fato de ter o suposto direito para agir assim. De outro, uma resposta violenta e injustificável de ajustar as contas por meio do assassínio, puro e simples. O diálogo e o respeito ao outro, bases da democracia, se esvaíram.

É interessante notar que a reação violenta da insurgência islâmica está oferecendo uma ótima oportunidade aos grupos de extrema direita para justificar sua pauta xenófoba, assim como o ataque à Torres Gêmeas, em 2001, deu argumentos para os setores mais reacionários da sociedade norte-americana na sua “guerra contra o terror”. Desde então, assistiu-se aos maiores ataques à liberdade individual na história dos Estados Unidos (e do mundo), além de abrir caminho para os conhecidos casos de tortura de “terroristas”, a prisão sem julgamento em Guantánamo e a invasão de países como o Afeganistão e o Iraque. Em nome da segurança, rasgou-se as leis e os preceitos mais caros à democracia. O fascista religioso e o fascista político são faces da mesma moeda.

Caberia indagar sobre como reagiria a sociedade brasileira diante da motivação original da escalada de violência. Como seria vista uma caricatura que colocasse a Virgem Maria numa posição sensual? Ou um Rabino surrupiando algum bem numa loja de luxo? Um Pastor ensinado a outro como ludibriar um devoto para aumentar o estoque de dízimo? Ou ainda, a reprodução da própria imagem do Cristo nu e prostrado de joelhos?

Tais perguntas não são sem propósito. Diversos colunistas brasileiros vêm defendendo o direito irrestrito do Charlie Hebdo de insultar a fé muçulmana. Mas se isso ocorresse no Brasil, o autor da ofensa religiosa poderia ser enquadrado no artigo 208 do Código Penal. Até agora, nenhum desses colonistas defendeu que tal artigo seja extirpado de nosso ordenamento legal. Afinal, o Estado de Direito não é o primado da lei?

Vale repetir um dos fundamentos da democracia: ela não é a ditadura da maioria, mas o espaço onde a minoria possa sobreviver sem assédios. O respeito continua sendo um dos pilares centrais dessa premissa, assim como o direito a vida e a solução negociada de conflitos.

A propósito, o autor destas linhas é ateu e respeita as opiniões dos outros.

Marcos Cordeiro Pires é coordenador do Curso de Especialização em Negociações Econômicas e Operações Internacionais da Unesp e professor da Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília.

Este artigo foi publicado originalmente no Estadão Noite de 16 de janeiro de 2015.