sábado, 13 de setembro de 2014

REVISTA CARTA NA ESCOLA: A alforria dos emergentes O banco do BRICS possibilita a fuga dos países em desenvolvimento das duras condições impostas pela governança global

Por Marcos Cordeiro Pires

Fonte: http://www.cartanaescola.com.br/single/show/420

O conceito BRICS nasceu em 2003 já com um viés marqueteiro, posto que foi criado pelo economista-chefe do banco Goldman Sachs, Jim O’Neill, para atrair investidores para os papéis das nações com potencial para suplantar a economia dos países desenvolvidos até 2050. São os chamados “países BRIC”, acrônimo de Brasil, Rússia, Índia e China. À época, não se mencionava a África do Sul, cujo “S” de South Africa, apenas entraria no grupo em 2011, na cúpula da China.

O insight de O’Niell rendeu frutos. Em 2009, na cidade russa de Ecaterimburgo, os chefes de Estado de Brasil (Lula), Rússia (Dmitri Medvedev), Índia (Manmohan Singh) e China (Hu Jintao) formalizaram a criação de uma organização informal denominada BRIC. O objetivo principal do grupo é o de coordenar as ações dos países em desenvolvimento que estavam subrepresentados em diversos foros de governança global, como o FMI, Banco Mundial, Conselho de Segurança da ONU e Organização Mundial do Comércio (OMC).

Tal articulação de perfil Sul-Sul já havia obtido sucesso em bloquear novas rodadas de abertura na OMC, em Doha, porque não havia a contrapartida dos países desenvolvidos em liberar o mercado agrícola. Ademais, em foros como o Painel da ONU sobre Mudança Climática, Brasil, Índia e China haviam se articulado para que os custos do combate ao “aquecimento global” não recaíssem sobre os países em desenvolvimento, uma vez que os industrializados poluíam o mundo há pelo menos 200 anos. Do ponto de vista financeiro, os países BRICS também pleitearam a democratização do FMI e do Banco Mundial nas cúpulas do G-20, recorrente desde 2009. Aí está o foco de atuação dos BRICS: democratizar as instituições multilaterais controladas pelos países desenvolvidos, situação que reflete o status quo do final da Segunda Guerra Mundial.

O processo de globalização reorganizou espacialmente a economia mundial, incorporando aos processos produtivos parte expressiva dos países em desenvolvimento, principalmente a China. Esta, durante a década de 2000, tornou-se a principal potência industrial do mundo, além de ser o maior ator no comércio internacional e ainda suplantar o Japão como segunda maior economia.

Por outro lado, o fim da Guerra Fria fez com que novos países integrassem a economia mundial sob a hegemonia dos EUA, como foram os casos de Rússia (ex-URSS) e Índia, que adotavam uma estratégia própria de desenvolvimento fora do circuito capitalista internacional. O Brasil, a partir de 1990, também se viu forçado a ingressar na globalização ao abrir seu mercado de bens e de capitais, tornando-se um espaço a mais para a valorização do capital. De forma similar, quando a África do Sul superava o apartheid, em 1994, os dirigentes do Congresso Nacional Africano (CNA) se viram compelidos a adotar o modelo econômico neoliberal para garantir estabilidade internacional para o governo da maioria negra. Em síntese, no período de 1980 a 2000, foi incorporado ao mercado mundial um contingente de quase 3 bilhões de pessoas, grande parte delas dos países BRICS.

A entrada desses atores na economia internacional está contribuindo para a modificação da geopolítica e da economia do mundo. Em 1960, os países ricos detinham 75% do PIB mundial. Em 2010, haviam caído para 55% e, em 2017, projeta-se que os países em desenvolvimento atinjam mais da metade do produto e do comércio mundiais. Apenas a China possui atualmente em torno de 3,6 trilhões de dólares em reservas internacionais, das quais 1 trilhão de dólares, aproximadamente, em títulos da dívida dos Estados Unidos. Mesmo o Brasil, que outrora foi devedor do FMI, é um dos principais detentores de títulos do Tesouro dos Estados Unidos, fato que merece destaque.

Por causa desse peso econômico ascendente, e apesar das enormes diferenças que caracterizam os BRICS, os governantes dos países se organizam para reformar os órgãos de governança global, cuja divisão de poderes está desbalanceada, não refletindo a nova configuração política do mundo e desconsiderando as transformações estruturais que vêm ocorrendo na cena internacional.

De forma geral, durante as cinco primeiras cúpulas dos BRICS, nos comunicados emitidos entre 2009 e 2013, nota-se a preocupação com a recuperação da economia mundial, o pleito de democratização das Instituições Financeiras (FMI e Banco Mundial), a defesa da autodeterminação dos Estados e não interferência em assuntos internos dos países e ainda na cooperação entre os membros do Grupo e outros países em desenvolvimento. Apesar do teor genérico, os países BRICS têm mostrado unidade em relação a temas controversos na agenda internacional, como a condenação dos ataques da Otan à Líbia ou ainda a uma possível intervenção militar estrangeira no conflito sírio. Especificamente no comunicado de e-Thekwini (Durban, África do Sul), em março de 2013, dois aspectos chamaram atenção: a) A perspectiva de institucionalização dos BRICS, no sentido de dar organicidade à ação. b) A possibilidade de criação de um banco de fomento conjunto para auxiliar o desenvolvimento dos países membros e também de outros em desenvolvimento (BRICS, 2013). De forma prática, destaca-se o fato de que os BRICS conseguiram articular os países em desenvolvimento para eleger o brasileiro Roberto Azevedo como diretor-geral da OMC, contra a candidatura mexicana apoiada pelas nações desenvolvidas.

Na cúpula dos BRICS, realizada no Brasil em julho de 2014, os líderes do grupo começaram a materializar as intenções anunciadas anteriormente. Exemplo disso foi a oficialização da criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), para apoiar projetos dos países do bloco e outras nações em desenvolvimento e a criação de um Fundo de Contingência para auxiliar os BRICS em crise de balanço de pagamentos. Tais medidas foram uma resposta à letargia dos países ricos em implementar a decisão da cúpula do G-20 de Seul 2010, que já havia determinado a redivisão das cotas do FMI, e também à incapacidade e/ou desinteresse do Banco Mundial em patrocinar projetos de infraestrutura nos países em desenvolvimento.

O capital inicial do NBD será de 50 bilhões de dólares, para os quais cada país aportará 10 bilhões de dólares. Ficou definido que a sede do banco será em Xangai e que o primeiro presidente será um indiano. A direção do BND será rotativa, com mandato de cinco anos para cada país. Já o Fundo de Contingência contará com o montante de 100 bilhões de dólares. A China aportará 41 bilhões de dólares, África do Sul, 5 bilhões de dólares, e os 54 bilhões de dólares restantes serão aportados em cotas iguais por Brasil, Rússia e Índia.

Comparando os volumes em questão com aqueles concentrados pelo FMI e pelo Banco Mundial, as duas instituições parecem ser modestas. Não é correto afirmar que as ações dos BRICS vão ofuscar ou substituir as atuais instituições multilaterais. No entanto, o significado é extremamente impactante, já que se abre uma janela de oportunidades para os países em desenvolvimento criarem mecanismos de cooperação para fugir das duras condicionalidades impostas pelas Instituições de Bretton Woods. Países como o Brasil e outros da América Latina sabem o quanto tiveram seu processo de crescimento bloqueado pelas políticas restritivas impostas pelo chamado Consenso de Washington. Na Europa, hoje em dia, as nações em crise apresentam níveis insuportáveis de desemprego, por causa de ações similares da tríade Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI.

Ainda é cedo para afirmar que os países BRICS terão coesão política para levar adiante reformas profundas nas organizações internacionais. No entanto, as medidas recém-anunciadas representam um divisor de águas nas relações internacionais. Basta lembrar que há apenas 70 anos a Índia era colônia britânica e a China era uma semicolônia do Ocidente. O Brasil era um dos países mais atrasados da América do Sul e a África do Sul, dominada por minorias brancas. Só a Rússia desceu de status, mas está novamente se reafirmando como grande potência. O século XXI abre-se como espaço para grandes mudanças e esperamos que sejam para o bem das populações dos países em desenvolvimento.

Publicado na edição 90, de setembro de 2014

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