quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Como Marília está na Grande Bauru, trago a bela memória de Luiz Carlos Azenha sobre seu pai

Nas piscinas, bandeira vermelha
publicado em 21 de abril de 2012 às 2:12


por Luiz Carlos Azenha

Outro dia a dona Lourdes descobriu, nos arquivos familiares (na verdade, caixas de sapato da Casa Carvalho) esta foto. Foi feita durante a campanha das Diretas, em 1984, em Bauru. Como diria o pessoal do antigo DOPS, a polícia política dos tempos da ditadura, lobos em pele de cordeiro.

O primeiro à esquerda (sempre à esquerda) é o sr. Azenha. José Rodrigues Azenha, meu pai. Depois o Ladeira, o meu padrinho e o então prefeito de Itapuí, cujo nome agora me foge. Itapuí é uma cidade na região metropolitana de Bauru.

Bauru, como vocês sabem, tem mania de grandeza. Acho que existia Grande Bauru antes de existir Grande São Paulo. O viaduto local, que permitia atravessar a linha de trem, já nos meus tempos de adolescente era chamado de Elevado João Simonetti. O prefeito queria agradar os parentes do dono da rádio e chamou o viaduto de Elevado.

E como o Elevado ficava perto da sede da rádio — mas, pensando bem, nem tanto –, todo dia, durante o jornal radiofônico, na hora de dizer a temperatura, o locutor disparava: “No Elevado João Simonetti, 33 graus”.

Curiosamente, como diz outro jornalista bauruense, o Arnaldo Duran, a rádio resolveu fazer como as cidades do litoral, onde as emissoras anunciam as condições de banho nas praias. Assim, depois de anunciar a temperatura no Elevado João Simonetti, o locutor dizia: “Nas piscinas, bandeira azul”.

Sendo Bauru onde é, no coração do estado de São Paulo, nunca me lembro de ter ouvido sobre bandeiras vermelhas nas piscinas da cidade.

A não ser, lógico, que o seo Azenha estivesse por perto. A essa altura vocês notaram que o velhinho da foto é o Cavaleiro da Esperança, Luiz Carlos Prestes. Não, não foi meu padrinho de verdade, mas não preciso explicar a origem de meu nome.

Olhar a foto me fez viajar no tempo. É sempre interessante refletir sobre a extraordinária experiência que muitas pessoas têm ao longo de uma única vida.

O seo Azenha é de Cadima, Cantanhede, na região de Trás-os-Montes, Portugal. De uma família da zona rural. A gripe espanhola dos anos 20 matou vários parentes, inclusive o meu avô. Contava o meu pai que, criança, observou os carros de boi que vinham apanhar os mortos. A família não era pobre, mas meu pai gostava de dramatizar. Quando queria nos convencer a não deixar nada no prato, relembrava. “Em Portugal, fazíamos sopa de pedra”. Sopa de pedra? Ficávamos todos curiosos. E ele: “Minha mãe fervia água e eu apanhava uma pedra no quintal. Depois de lavar, a pedra era colocada na panela. Deixava um gostinho. Era a sopa de pedra”. Educação alimentar à portuguesa.

Meu pai era um português piadista, fruto da autoconsciência que, imagino, se desenvolveu quando o jovem do interior foi para a cidade grande, Coimbra. É certamente dolorosa a sensação de não fazer parte da turma, mas o que se perde em afeto se ganha em resiliência. Meu pai falava sempre que os homens portugueses do tempo dele eram medidos pelo tamanho da pança. A barriga desenvolvida era sinal de fartura burguesa. Não foi a fome que fez do seu Azenha comunista, foi a sensação de não pertencimento.

Foi também o que tirou meu pai de Portugal. Para escapar de servir ao exército salazarista, sob o risco de defender, logo quem, Hitler!, meu pai embarcou em um navio com destino a Santos.

Curiosamente, quando eu era menino, em Bauru, duas coisas me fascinavam. Em primeiro lugar, as locomotivas pintadas em vermelho e amarelo da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Depois percebi que gostava era do movimento delas, sempre em direção a algum lugar indefinido. Outro fascínio, na verdade um sonho, era seguir um rio até a nascente.

Eu viajava ao mesmo tempo em direção à origem e ao futuro.

Seo Azenha era, também, uma contradição ambulante.

Tinha tino para o comércio e tornou-se, a certa altura da vida, um rico empresário de Osvaldo Cruz, no interior de São Paulo. Dono ao mesmo tempo de uma fábrica de camisas e de outra, de laminados de madeira, no norte do Paraná. Dava-se ao luxo de ir a São Paulo e pegar o avião da Panair para ver o Vasco jogar no Maracanã.

Ainda assim, nunca abandonou a militância. Com amigos, mantinha gráfica clandestina para imprimir os panfletos usados em campanhas para apoiar candidatos simpáticos ao Partidão ou atacar os adversários. Já de idade, meu pai se lembrava gargalhando da ocasião em que os militantes encomendaram ao Bessinha de então a imagem de um adversário político como se fosse um urubu.

O Partidão, como vocês bem sabem, sempre foi um partido moderado, aliancista. “Etapista”, dizíamos nós, com desdém, nos tempos da Universidade de São Paulo, quando — eu e meu irmão — nos acreditávamos verdadeiramente revolucionários. Ah, os jovens!

O fato é que cresci filho de comunista em Bauru, o que não foi fácil.

Durante a ditadura militar, ser filho de comunista em cidade pequena equivalia a padecer, aos olhos dos outros, de alguma doença grave.

Não havia margem para errar, por exemplo, na escola. É filho de comunista, tadinho… mas tira 10.

O que os cinco irmãos não herdaram da autoconsciência do pai, foram forçados a desenvolver crescendo vermelhinhos em Bauru.

Na verdade, foi um tempo maravilhoso. Acompanhávamos de perto a leitura rigorosa que meu pai fazia, aos domingos, do Estadão; à noite, ele ligava a eletrola Semp para ouvir a emissão em português da BBC de Londres e da rádio de Moscou. Três visões, digamos, bem distintas do mundo — e lá fora, a realidade de Bauru.

Aprendemos todos a conviver com uma alta dose de ansiedade. Vocês sabem o que é arbítrio, de perto? É alguém entrar na sua casa, a qualquer hora, armado e sem mandado, para fazer uma busca. É óbvio que o disciplinado comunista pouco contava de sua militância à família, como forma de evitar que, sob pressão, alguém desse com a língua nos dentes. De certa forma, aquele meu fascínio pelas locomotivas da Noroeste expressava também um sonho de fuga.

Havia uma silenciosa cumplicidade entre todos de casa. Os livros, vamos dizer, “perigosos”, eram escondidos entre o forro e o telhado, razão pela qual até a gata Sebrentina tinha noções de marxismo. Havia poucos comunistas em Bauru e os policiais locais subordinados ao DOPS precisavam mostrar serviço. Quando a coisa esquentava, prendiam os suspeitos de sempre. Acho que foi em 1968, depois do AI5, que meu pai resolveu enterrar alguns livros no fundo do quintal. Eu e meu irmão o ajudamos na tarefa, mas quando a coisa esfriou descobrimos que o lusocomunismo tinha sofrido um grave revés. Toda aquela linda coleção USA x URSS, da Editora Abril, se perdeu, mofada.

O seo Azenha se foi no dia 21 de abril de 2005. Antes de uma cirurgia, me instruiu: se houver problemas, quero ser cremado e que minhas cinzas sejam jogadas na baía de Santos. E lá se foi seo Azenha, alimentar os peixes, no mar em que a vida dele se transformou. Às vezes revolto, às vezes calmo. Contraditório sempre, como todos nós.

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