segunda-feira, 17 de março de 2014

O QUE PAUL KRUGMAN TEM A ENSINAR AOS RACISTAS BRASILEIROS? RECLAMA-SE DA BOLSA FAMÍLIA, MAS NÃO DA BOLSA BANQUEIRO!

AQUELE VELHO REFRÃO
FSP- 17/03/2014.

PAUL KRUGMAN

Existem muitas coisas negativas a dizer sobre Paul Ryan, presidente do Comitê Orçamentário da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos e, para todos os efeitos, líder intelectual do Partido Republicano. Mas é necessário admitir que ele é um homem muito articulado, um especialista em fazer parecer que ele sabe sobre o que está falando.

Por isso é cômico, de certa maneira, ver Ryan tentando minimizar algumas declarações recentes nas quais atribuía a pobreza persistente a uma "cultura, especialmente em alguns centros urbanos decadentes, de os homens não trabalharem, de gerações inteiras de homens nem pensarem em trabalhar". Ryan agora diz que ao fazer essas declarações ele foi "desarticulado". Como é que alguém pode sugerir que ele estivesse repetindo refrões racistas? Ora, ele chegou até a citar trabalhos de acadêmicos importantes - gente como Charles Murray, mais conhecido por argumentar que os negros são geneticamente inferiores aos brancos. Ops, calma lá.

É bom deixar claro que não existem indicações de que Ryan seja racista, como pessoa, e seu uso de um clichê racial talvez nem tenha sido deliberado. Ele disse o que disse porque esse é o tipo de coisa que os conservadores dizem uns aos outros o tempo todo. E por que eles dizem coisas como essas? Porque o conservadorismo norte-americano continua a ser, depois de todos esses anos, propelido por alegações de que os progressistas estão tirando o dinheiro que ganhamos com nosso trabalho suado para dá-lo Àquelas Pessoas.

De fato, a raça é a Pedra de Roseta que ajuda a traduzir muitos aspectos de outro modo incompreensíveis da política norte-americana.

Dizem, por exemplo, que os conservadores são contra o governo grande e gastos públicos pesados. Mas no momento mesmo em que os governadores e Legislativos estaduais republicanos bloqueiam a expansão do programa federal de saúde Medicaid, o partido denuncia ferozmente algumas medidas modestas para reduzir os gastos com o Medicare, outro programa federal de saúde. Como explicar essa contradição? Bem, basta ver com quem muitos beneficiários do Medicare se parecem - e estou falando de cor de pele, e não de caráter. Pronto, mistério resolvido.

Ou dizem que os conservadores, especialmente o movimento Tea Party, se opõem à assistência social porque acreditam em responsabilidade pessoal, em uma sociedade na qual as pessoas precisam arcar com as consequências de suas ações. Mas é difícil encontrar críticas ferozes do Tea Party aos imensos resgates a Wall Street, às imensas bonificações pagas a executivos salvos do desastre por intervenções e garantias do governo. Em lugar disso, toda a paixão do movimento, a começar pelo famoso surto de indignação de Rick Santelli na CNBC, é dirigida contra qualquer indício de um esforço para ajudar os devedores de baixa renda. E o que exatamente, nesses devedores, os torna tamanhos alvos de ira? Você sabe a resposta.

Uma estranha consequência de nossa política ainda dividida em linhas raciais é que os conservadores continuam, na prática, a se mobilizar contra os vagabundos sustentados pela Estado de bem-estar social ainda que nem os vagabundos e nem o Estado de bem-estar social existam mais, se é que existiram um dia. A fúria de Santelli era voltada a medidas de resgate a mutuários devedores em seus financiamentos residenciais que na realidade nunca entraram em vigor. E a teoria de Ryan sobre a pobreza, a de que os homens negros não querem trabalhar, está defasada em décadas.

Nos anos 70, ainda era possível alegar, de boa fé, que havia oportunidades abundantes nos Estados Unidos, e que a pobreza só persistia devido a uma crise cultural entre os negros norte-americanos. Na época, afinal, os empregos industriais continuavam a pagar bem e o desemprego era baixo. Mas a realidade é que as oportunidades eram muito menos abundantes do que os norte-americanos ricos imaginavam; como documentou o sociólogo William Julius Wilson, a fuga da indústria antes instalada nos centros urbanos significou que os trabalhadores das minorias literalmente não tinham como chegar àqueles bons empregos, e a suposta causa cultural da pobreza era na verdade efeito da falta de oportunidade. Ainda assim, é compreensível que muitos observadores não tenham percebido isso.

Mas ao longo dos últimos 40 anos, os bons empregos para trabalhadores comuns desapareceram, e não só nos centros urbanos mas em toda parte: ponderados pela inflação do período, os salários de 60% dos norte-americanos de classe trabalhadora caíram, no período. E à medida que as oportunidades econômicas encolhiam para metade da população, muitos comportamentos que costumavam ser apontados como prova da deterioração da cultura negra - casamentos dissolvidos, abuso de drogas e assim por diante - se espalharam também entre os brancos da classe trabalhadora.

Esses fatos desconfortáveis não penetraram no mundo da ideologia conservadora, no entanto. No começo do mês, o Comitê Orçamentário da Câmara, por instrução de Ryan, divulgou um relatório de 205 páginas sobre o suposto fracasso da guerra contra a pobreza. O que o relatório tem a dizer sobre o impacto da queda dos salários reais? Bem, o assunto jamais é mencionado.

E porque os conservadores não conseguem se forçar a reconhecer a realidade do que está acontecendo nos Estados Unidos, em termos de oportunidade, só lhes resta repetir os velhos refrões. Ryan, portanto, não foi desarticulado: ele disse o que disse porque é só isso que tem a dizer.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia (2008), colunista do jornal "The New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados.
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